quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Da Garautuja a Palavra - Concepcoes precoces

As hipóteses que a criança elabora sobre o que a escrita representa evoluem à medida que a criança cresce e se desenvolve. Se inicialmente a criança escreve sem um significado, não tendo compreendido ainda que a escrita codifica uma mensagem, ao fim de algum tempo a situação muda e a criança entra numa nova fase que representa uma grande evolução na aprendizagem da linguagem escrita: compreendem que a escrita tem um significado. A partir daí as suas garatujas passam a assumir um significado, a criança garatuja com a intenção de transmitir uma mensagem. E assim as suas primeiras tentativas de escrita vão-se aproximando cada vez mais das letras e da escrita convencional, sobretudo se a criança viver num meio que lhe é favorável à aquisição desta aprendizagem.

Muitos foram os que se interessaram por este assunto e realizaram investigações neste campo. A metodologia preferencialmente utilizada para estudar as conceptualizações das crianças tem sido a de envolver as crianças em verdadeiras situações de leitura e escrita, observar os seus comportamentos e recolher os seus comentários

Ferreiro e Teberosky (1991) realizaram um estudo com crianças hispanófonoas de 4 a 6 anos de idade de diferentes níveis socio-económico. Este estudo, cuja situação experimental ocorreu através de entrevistas individuais, consistia pedir às crianças que escrevessem como soubessem palavras desconhecidas, o seu nome e uma oração sugerindo-lhes que lessem o que tinham escrito, permitiu-lhes definir cinco níveis sucessivos de evolução da produção de escrita da criança. No nível 1 escrever é produzir marcas gráficas, e se em determinadas situações existem dificuldades em diferenciar as actividades de escrever e desenhar, noutras o desenho parece surgir como de apoio à escrita, como uma garantia de significação da última, uma vez que tentativas de produção de escrita com sentidos e significados diferentes se assemelham muito entre si. Neste nível e devido ao facto de não existirem diferenças objectivas no resultado de produções de escrita com diferentes sentidos e significados, a escrita não é vista como um veículo de transmissão de informação – “(…) cada um sabe o que escreve(…)”. (FERREIRO e TEBEROSKY, 1991, p.183) Neste nível a escrita surge também como uma representação do real, existindo uma correspondência entre aspectos quantificáveis do referente e aspectos quantificáveis da escrita. As crianças fazem variar o número e o tamanho das grafias em função do número e do tamanho de um objecto ou animal, ou mesmo em função da idade de uma pessoa - hipótese quantitativa do referente. Assim quando pretendem escrever elefante recorrem a grafias muito grandes e/ou compridas, mas se pretendem escrever formiguinha recorrem ao uso de grafias muito pequenas e/ou curtinhas. Neste nível as crianças parecem estabelecer um critério de lisibilidade quantitativo e qualitativo no qual se apoiam para decidir o que se pode e não pode ler, uma vez que utilizam constantemente um número mínimo de símbolos diferenciados (3 ou 4) para escrever- hipóteses de variedade e quantidade mínima de letras. Nesta fase a leitura é global, a mensagem que querem transmitir é codificada como um todo, e as crianças acreditam que o que se escreve são os nomes dos referentes e que a escrita é linear. A criança começa depois a perceber que para ler coisas diferentes deve haver uma diferença objectiva na escrita evoluindo para nível 2. Contudo como a disponibilidade de formas gráficas é ainda limitada, a única maneira para responder a todas as exigências que a escrita lhe coloca é mudar a posição dos mesmos na ordem linear. Assim passam a usar o mesmo reportório de elementos que conhecem variando as posições e os tamanhos para dizer coisas diferentes. No decurso deste desenvolvimento a criança pode começar a adquirir modelos estáveis de escrita, isto é, formas fixas que é capaz de reproduzir mesmo sem o modelo, nomeadamente o nome próprio. Progressivamente a criança começa a perceber que a escrita está relacionada não com os objectos, mas com a linguagem oral. O nível 3 é então caracterizado pelo aparecimento da hipótese silábica em que cada letra ou grafia representada vale pelo som de uma sílaba do nome. Supera-se a etapa de uma correspondência global entre a forma escrita e a expressão oral atribuída, para passar a uma correspondência entre partes do texto e partes da expressão oral. Com o aparecimento da hipótese silábica começam a surgir conflitos, nomeadamente entre a hipótese silábica e a exigência da quantidade mínima de grafias, mais especificamente na escrita de monossílabos e de dissílabos, e entre as formas gráficas que o meio lhe propõe e que a criança fixa e a leitura dessas formas em termos de hipótese silábica. Torna-se difícil para a criança coordenar as múltiplas hipóteses que foi elaborando e por isso ela começa a ter necessidade de ir mais além. A escolha das letras para representar os sons da linguagem oral deixa de ser arbitrária e a escrita começa a ir além da representação da sílaba. E assim a criança ascende ao último nível, o nível 5, quando representa os fonemas com os grafemas correspondentes, realizando uma escrita tipicamente alfabética.

Besse (1989) (cit. in ALVES MARTINS, 1996) utilizando uma metodologia semelhante trabalhou com crianças de língua francesa em idade pré-escolar de níveis socio-económicos também contrastados. A situação experimental consistia em pedir às crianças para que escrevessem cada palavra ou frase ditada, para dizerem o que tinham escrito e onde, pedindo depois o experimentador que dissessem o que tinham escrito no fragmento por ele indicado. As respostas das crianças foram analisadas e classificadas de acordo com uma grelha exaustiva em cinco grupos. De entre estes cinco grupos o primeiro não corresponde a um nível evolutivo, uma vez que neste grupo o autor incluiu a recusa de resposta, comportamento que não foi referido pelos autores do estudo anterior. Os restantes grupos foram classificados enquanto quatro níveis evolutivos, de acordo com o tipo de escrita dominante: produção escrita sem conservação do oral, a escrita é considerada com um traço gráfico diferente do desenho, mas sem significado próprio e constante; ajustamento oral/escrito, a escrita é entendida como um traço relativo à cadeia sonora, cujo o significado é estável; análise fonética, a escrita é um traço relativo à análise fonética do enunciado, por isso há uma tentativa de escrever as letras correspondentes aos sons analisados, embora muitas vezes não exista uma preocupação com a ordem; e, escrita alfabética, a escrita é concebida como um traço que codifica, na mesma ordem, a sucessão dos sons da linguagem oral, o que demonstra que neste nível as crianças já compreenderam o princípio da correspondência grafema-fonema. É de referir que Besse não encontrou no seu estudo crianças num nível silábico como descrevem Ferreiro e Teberosky (1991), diferenças que podem ser segundo Alves Martins (1996) “devidas às características próprias das línguas espanhola e francesa que influenciaram as hipóteses conceptuais das crianças.”

De Góes et al (1983) (cit. in ALVES MARTINS, 1996) estudaram a evolução da escrita em crianças inglesas dos 3 aos 6 anos. Utilizando uma metodologia um pouco diferente, que consistia num ditado de palavras, numa cópia a partir de um modelo impresso e numa nova cópia a partir da primeira, os autores identificaram sete níveis de conceptualização da linguagem escrita. Num primeiro nível escrever é simplesmente produzir marcas gráficas que nada representam. Posteriormente a evolução da representação faz-se dos objectos para as palavras, começando em níveis avançados a aparecer a recusa da escrita, também descrita por Besse, por parte de algumas crianças, que já compreendendo que a língua é determinada por regras que ainda não dominam, alegam não saber escrever. Tal como Besse, também estes autores não encontraram crianças num nível silábico. Relativamente à situação de cópia, nos primeiros quatro níveis é possível reconhecer algumas letras do modelo, embora a linearidade, a direcção ou a ordem das letras não seja respeitada, negando-se estas crianças na recópia a utilizar a sua primeira cópia como modelo, situação que se altera no quarto nível. A partir do quinto nível as crianças começam a reproduzir correctamente os modelos na cópia e recopia.

Em Portugal foram realizados alguns estudos que ao contrário dos de Besse e de Góes et al, referem a produção de escritas silábicas. Alves Martins (1994) analisou as concepções precoces sobre a linguagem escrita, através de uma situação de produção de escrita que consistia em pedir a crianças em idade pré-escolar e no início da escolaridade que escrevessem o seu nome, um conjunto de palavras - três nomes de animais da mesma família (gato, gata e gatinho) e dois nomes de animais que reenviam para referentes de tamanho diferentes (formiga e cavalo)- e uma frase, contendo uma acção e uma palavra pedida anteriormente (o gato come o rato). A análise do conjunto de produções escritas, das verbalizações que as acompanharam, do tipo de leitura efectuada e das condutas adoptadas aquando do assinalamento de fragmentos de palavras ou das diversas palavras da frase, permitiram classificar as respostas em quatro níveis evolutivos de apropriação do sistema escrito. O primeiro nível é o nível da escrita pré silábica. Escrita que é caracterizada pela utilização de variados grafemas (letras, pseudo-letras, algarismos), que não estão relacionados com a linguagem oral, sendo a escrita das diversas palavras orientada por critérios grafo-perceptivos - quantidade mínima de letras e variação na sua posição para a escrita de diferentes palavras, tal como acontece no primeiro nível que Ferreiro e Teberosky (1991) definem. Do mesmo modo mantém-se a hipótese quantitativa do referente. A leitura é global, logo não é concebida a segmentação da palavra (as partes da escrita dizem o mesmo que a totalidade). Quando as crianças começam a perceber que a mensagem se divide em partes e que essas partes são codificáveis, a escrita começa a ser orientada por critérios linguísticos. Dá-se o aparecimento da escrita silábica, fase que é semelhante ao nível 3 descrito por Ferreiro e Teberosky (1991). Ascrianças utilizam letras variadas para a escrita de cada palavra e a cada sílaba da palavra atribuem uma letra, escolhida arbitrariamente. Na escrita da frase ou uma letra representa uma palavra ou escrevem silabicamente as diversas palavras, não as separando umas das outras e geralmente não escrevendo os artigos. Nesta fase a leitura de palavras e frases é silabada e, quando se tapa uma parte da palavra as crianças tentam segmentar o enunciado oral. Na fase seguinte, escrita com fonetização ou escrita silábica com correspondência, segundo Castro Neves e Alves Martins (1994), as crianças começam a distinguir no som das palavras alguns fonemas que registam no escrito. A escolha das letras para representar os sons do oral deixa de ser arbitrária e as correspondências fonema-grafema começam a ser utilizadas correctamente, excepto em casos como o do «h» para representar o som «gá», devido ao nome da letra. Nesta fase a leitura é silabada e as operações de segmentação da palavra são geralmente conseguidas. A análise do oral pode ser silábica ou ir além da sílaba, apesar das crianças ainda não representarem todos os sons da fala. A escrita alfabética, fase correspondente ao nível 5 de Ferreiro e Teberosky (1991), caracteriza-se pela compreensão do princípio alfabético do código escrito. A escrita é correcta apesar de poder haver erros de ortografia, a leitura deixa de ser silabada, as operações de segmentação são conseguidas e a frase contém todas as palavras ditadas.

Fonte-http://linguagemescrita.no.sapo.pt/index_ficheiros/Page513.htm

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