domingo, 10 de outubro de 2010

Ceticismo

Deve se duvidar de tudo

Josué Cândido da Silva*
Especial para Página 3 Pedagogia & Comunicação
Reprodução

Para Kant, o cético nos lembra de que pensar não é um fim, mas uma atividade

Se alguém lhe perguntasse "O que você conhece?", você poderia pensar em uma porção de coisas, a maioria delas adquiridas em sua experiência cotidiana. Mas se a pessoa insistisse e perguntasse "Algo do que você sabe é realmente verdade? Apostaria sua vida nisso?", essas questões complicariam um bocado as coisas.

Eu, por exemplo, poderia dizer que tenho certeza que sou filho dos meus pais, mas talvez eu tivesse sido adotado ou trocado na maternidade e estar enganado a esse respeito. Poderia ainda estar enganado sobre uma série de outras coisas que até então julgava certas. E se reparar direito, tudo o que eu tenho são crenças, algumas até muito razoáveis, mas nada de que eu possa dizer que é uma verdade irrefutável. Percebo, então, que me falta um parâmetro para examinar as minhas crenças e verificar quais são realmente certas e quais são falsas.

Condições universais de validade

Durante a história da filosofia, vários foram os filósofos que tentaram estabelecer as condições para que algo fosse tomado como absolutamente verdadeiro, isto é, uma verdade que independesse de fatores circunstanciais e que fosse algo que não fosse verdadeiro para mim ou para um grupo de pessoas, mas para todos os seres racionais.

Você deve estar cansado de ver por aí grupos de pessoas com crenças estranhas, que dizem que eles estão certos e todos os outros enganados. Nesse caso, como decidir quem está certo? Votando? Mas se a maioria estiver errada e o pequeno grupo estiver certo, nunca conheceremos a verdade porque eles sempre perderão nas votações. É preciso que se trate de uma verdade universal, isto é, válida para todos, tanto para a maioria quanto para as minorias. Portanto, o que os filósofos investigam são as condições universais de validade, aquelas condições que independem das opiniões particulares que eu ou você possamos ter.

Ceticismo

Na investigação sobre as condições de validade do nosso conhecimento um grupo de filósofos merece destaque: os céticos. O termo cético vem da palavra grega skepsis, que significa "exame". Atualmente, dizemos que uma pessoa cética é alguém que não acredita em nada, mas não é bem assim. Um filósofo cético é aquele que coloca suas crenças e as dos outros sob exame, a fim de verificar se elas são realmente dignas de crédito ou não.

Pirro de Elis (360-275 a.C.) é considerado o fundador do ceticismo. Segundo ele, não podemos ter posições definitivas sobre determinado assunto, pois mesmo pessoas muito sábias podem ter posições absolutamente opostas sobre um mesmo tema e ótimos argumentos para fundamentar suas posições. Nesse caso, Pirro nos aconselha a suspensão do juízo e a mantermos nossa mente tranqüila (ataraxia). Ao invés de enfrentarmos o desgaste de acalorados debates que não produzirão certeza alguma, devemos manter silêncio (apraxia) e preservar uma atitude de suspeita diante de qualquer tipo de dogmatismo.

Depois de Pirro, muitos outros filósofos tornaram o ceticismo uma das mais importantes correntes filosóficas até os dias de hoje. Atualmente, alguns céticos defendem o probabilismo ou falibilismo, ou seja, na impossibilidade de encontrarmos verdades absolutas, seja pelas limitações de nossos sentidos e intelecto, seja pela complexidade da realidade, devemos tratar nossas crenças sempre como provisórias, como quem anda em gelo fino.

Desse modo, um cético nunca seria pego de surpresa se algo que todos acreditavam ser verdade se revelasse falso no futuro. Por outro lado, reconhecer que as verdades são provisórias não significa uma completa inação. Sabemos que os remédios são falhos, mas são a única coisa que temos para combater as doenças.

Isso também vale para o campo da ética. O filósofo Montaigne propunha que vivêssemos em harmonia com os costumes de nosso povo ou cultura, pois embora eles sejam falhos, são tão falhos quanto os de qualquer outro povo, não havendo razão para preferir este a aquele.

Despertar do sono dogmático

Conta a lenda que Pirro morreu enquanto dava aula de olhos vendados. Um aluno o teria alertado quanto ao precipício à sua frente. Cético, Pirro desconfiou do aluno e caiu. Essa lenda, obviamente, pretende mostrar os perigos de se duvidar de tudo. Mas será que um cético autêntico não duvidaria também de suas próprias dúvidas?

Odiado por alguns, o cético é como a abelha que aferroa o boi do conhecimento, retirando-o da mesmice das ideias prontas e acabadas, nos provocando, por meio da dúvida, a investigar a fundo os pressupostos de nossas crenças; ou, como diria Kant, o cético é aquele que nos desperta do nosso sono dogmático para lembrar-nos que pensar não é um fim, mas uma atividade.

O Animal Político Diferenças entre política e politicagem

“Um aspecto importante na análise marxista (particularmente aquela inspirada nos textos dos Grundrisse) da individualidade do ser humano é a referência explícita e literal que Marx faz à famosa definição aristotélica de homem (presente tanto na Política como na Ética a Nicômaco) como zoon politikon (animal político). Para Aristóteles ‘o homem é por natureza um animal político’, isto é, um ser vivo (zoon) que, por sua natureza (physei), é feito para a vida da cidade (bios politikós, derivado de pólis, a comunidade política). No contexto da filosofia de Aristóteles, essa definição é plausível e revela a intenção teleológica do filósofo na caracterização do sentido último da vida do homem: o viver na pólis, onde o homem se realiza como cidadão (politai) manifestando, no termo de um processo de constituição de sua essência, a sua natureza.” (Prof. Dr. César Augusto Ramos - Prof. Filosofia Política – Depto de Filosofia da UFPR)

Aristóteles definiu os seres humanos como sendo “animais políticos”. A base para sua colocação, tantas vezes mal-interpretada, partiu da premissa de que somos seres sociais e que, por conta das particularidades dos espaços nos quais desenvolvemos nossas vidas, temos maior propensão e melhor adaptabilidade ao espaço urbano, a cidade ou, de forma mais adequada ao contexto de vida daquele pensador grego, a “pólis”.

O termo “pólis” tem estreita ligação com a vida dos helenos (gregos) da Antiguidade Clássica, pois define as bases territoriais de vida social e política em que se assentavam as comunidades unidas por fatores de proximidade entre as pessoas, como origens familiares, tribais, étnicas, linguísticas e culturais.

Surgidos a partir da migração de povos provenientes da Europa Oriental, Ásia e da Ilha de Creta (Civilização Micênica), como os jônios, dórios, eólios e os micênicos (ou cretenses), os primeiros povoados gregos, regidos pelos “pater” e, portanto, baseados na célula mater das sociedades, as famílias, deram origem as cidades gregas, as pólis.

A compreensão de Aristóteles, grego de gerações posteriores a conformação sócio-política e cultural que deu origem a cidades esplendorosas como Atenas e Esparta, portanto considera que, enquanto degrau evolutivo da humanidade, a pólis (cidade) configura o espaço máximo de expressão e realização humana, mas que tudo isso depende, porém, da forma como as pessoas irão conduzir esta existência coletiva.

A utilização da expressão “animal político” leva em consideração tanto o fator geográfico, físico e as questões relativas à delimitação de fronteiras – que por sua vez estipulam não apenas os espaços por onde podem e devem transitar os membros de uma determinada comunidade, como também os elementos e características que os definem social e culturalmente – como também pede e define como imprescindível a criação de regras, leis, bases de convivência e elementos de governabilidade.

E é, justamente, nesta migração para bases elementares para a coexistência pacífica entre os membros de uma mesma comunidade que se define aquilo que atualmente identificamos e intuímos ser “política”.

Os gregos, em especial os atenienses, discutiam as questões de interesse público, obviamente também mescladas a elementos mobilizadores de base particular, em praça pública, na chamada “ágora”. Mas a experiência da democracia direta, mesmo porque aplicada a uma única pólis e não a um conglomerado delas, funcionava porque as assembleias tinham que ser convencidas pelos articuladores das ideias e propostas ali mesmo, ou seja, in loco.

Convencer os cidadãos e não os representantes destes era muito mais complexo do que aquilo que hoje vemos nos corredores do Senado ou da Câmara Federal, no qual reinam os conchavos e imperam os lobistas com seu alto poder de sedução pautado em benefícios de alto valor...

Podem alegar os detratores da democracia vivida em Atenas que esta experiência não constitui uma versão exponencial de tal regime político porque as restrições à participação de expressivos contingentes sociais (como as mulheres, os menores de idade, os estrangeiros e os escravos) lhe destitui de tal representatividade que permita considerar tal experiência como sendo realmente expressão de governo (cratos) do povo (demo).

Mas o que, por outro lado, levam historiadores de diferentes origens e matizes ideológicos a considerarem a experiência dos atenienses como sendo legítima é o estabelecimento das assembleias públicas, dos fóruns e tribunais que julgavam as pendências, das bases de governo e responsabilização direta pela administração daquilo que era comum, coletivo e de usufruto de todos.

Os romanos, herdeiros do rico acervo cultural grego, composto pela política e por tantas outras matrizes genéticas que se espalharam pelos quatro cantos do mundo (como a filosofia, as artes plásticas, o teatro, a literatura...), deram continuidade e reforçaram as bases operacionais que confirmam a tese do “animal político” de Aristóteles, com o refinamento e aperfeiçoamento das bases jurídicas que sustentam o espaço político por excelência, as cidades...

Em ambos os casos, é preciso ressaltar que tanto gregos como romanos determinaram para a eternidade como fundamento social, contestado com veemência a partir do século XVIII, com os movimentos sociais de contestação ao capitalismo, a propriedade privada e, com ela, a diferença social. O passar dos séculos viu migrar o poder das mãos de quem tinha terras para quem detinha o capital ou, mais recentemente, o conhecimento...

Além disso, a Antiguidade Clássica herdou de seus antecessores, das sociedades hídricas ou baseadas no modo de produção asiático, como os fenícios, egípcios e os povos da Mesopotâmia a proeminência dos laços de sangue, da troca de favores e ainda da necessidade de estar bem-relacionado socialmente para conseguir progredir...

Ou seja, de certa forma, pode-se dizer que, guardadas as devidas proporções, somos herdeiros de séculos e séculos de hábitos e ações que constituem aquilo que definimos como “política”. E isto serve tanto para aquilo que podemos considerar como de interesse geral e, portanto, o que pode ser considerado benéfico, pois teoricamente coloca em pauta o que beneficia não apenas uma pessoa ou um pequeno grupo e, sim, a maioria do corpo social, quanto àquilo que fere os interesses coletivos...

E é nesta seara que migramos da política para a politicagem. Que, também nos conformes da teoria, deveria ter sido brecada ou ao menos estancada a partir da consolidação do sistema de poder tripartido, sugerido pelos iluministas, com destaque para a obra de Montesquieu, “O Espírito das Leis”. De acordo com o filósofo francês, ao estabelecermos a divisão de poderes com o surgimento do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, estaríamos tornando menos complexa a administração, delegando poderes a representantes que iriam defender os interesses da coletividade e, ao mesmo tempo, criando meios de fiscalização de um para outro poder que tornariam menos propícia a corrupção, o clientelismo, a prevalência dos lobbies...

E não é que, a República Democrática cruzou o Atlântico e mesmo com atraso chegou ao Brasil, a partir de 1889. Pensou-se por estas bandas que a superação do Império nos levaria a uma condição de maior prosperidade, liberdade, igualdade e fraternidade... No entanto, logo de cara estabeleceu-se o princípio do benefício em favor do Café com Leite, com a República dos Coronéis, a política do “é dando que se recebe”, os currais eleitorais, o voto fantasma...

E o que pensar de hoje em dia, depois de idas e vindas daquilo que esperávamos ser a democracia brasileira, com golpes de estado (como na década de 1930, com Getúlio Vargas, ou em 1964, com o estabelecimento da longa noite da ditadura militar) e até mesmo a abertura de um processo de impeachment logo quando o estado democrático de direito parecia estar se restabelecendo no país, no início da década de 1990, quando cassaram o mandato do “caçador de marajás”, o candidato collorido?

A leitura atual da expressão cunhada por Aristóteles, quanto ao homem como “animal político”, no Brasil e em outras partes do mundo também (com maior ou menor ênfase), nos leva a crer no predomínio da palavra “animal” que sobrepuja toda a compreensão anterior trazida a tona quanto ao conjunto da expressão e, em especial, a análise do termo “político”... Pensando-se, quanto a isto, nos animais quanto aos seus instintos mais primários, aqueles que se mostram mais presentes quando estes seres lutam por sua sobrevivência e, neste ensejo, ignoram qualquer sentido de respeito a vida em grupo, quanto mais a qualquer aspecto relacionado a civilidade, a princípio própria apenas aos seres humanos...

Este parece ser o quadro atual das condicionantes políticas brasileiras, ou seja, em pleno 3º milênio, regredimos a estágios animalescos que superam qualquer outro vetor, principalmente os que dizem respeito ao compromisso público que deveria ser assumido por todo e qualquer representante do povo estabelecido nas tribunas e bancadas do legislativo, do judiciário ou do executivo...

João Luís de Almeida Machado Doutor em Educação pela PUC-SP; Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP); Professor Universitário e Pesquisador; Autor do livro "Na Sala de Aula com a Sétima Arte – Aprendendo com o Cinema" (Editora Intersubjetiva).

fonte: www.planetaeducacao.com.br