A educação, ao lado da saúde vem sendo apontada como a grande tragédia nacional. Longe de ser uma novidade, este diagnóstico revela uma situação bastante conhecida e remete à necessidade de ações urgentes e eficazes. No centro deste debate encontram-se as propostas governamentais, que tem suscitado inúmeras críticas sobre sua eficácia na solução dos problemas educacionais a curto e longo prazo.
Dentre as projetos de alcance nacional já colocados em prática está a produção dos Parâmetros Curriculares Nacionais, destinados a imprimir uma direção mais uniforme e consistente ao trabalho desenvolvido nas escolas pelos professores de Ensino Fundamental (1a a 8a séries).
A grande novidade trazida pelos PCNs é a introdução dos chamados "temas transversais" que devem permear todo o conteúdo e a vivência escolar. A justificativa oficial para a escolha dos temas apóia-se em três critérios: urgência social (porque afrontam gravemente a dignidade das pessoas e rebaixam sua qualidade de vida), abrangência nacional (sem excluir assuntos importantes no âmbito local) e possibilidade de efetiva aprendizagem no ensino básico.
Situando nesta categoria os temas: "Ética, Pluralidade Cultural, Meio Ambiente, Orientação Sexual e Saúde", o projeto governamental expressa e introduz na sociedade não apenas inovações de caráter metodológico, mas uma concepção de educação e particularmente, uma visão sobre o papel da escola no contexto atual do país.
Esta proposta parte da percepção de uma situação social alarmante, que exige uma definição mais ampla das finalidades da escola e portanto, de seus conteúdos. Trata-se de um currículo "aberto", seja pelos temas que introduz, que tomam formas diferentes de acordo com o contexto em que se estabelecem, seja pela própria proposta em si, que prevê a inclusão de novos temas a partir da relação pedagógica e do contexto social. Sem dúvida, estamos diante de uma inovação de alcance nacional sem precedentes, o que por isto mesmo acarreta algumas dificuldades, riscos e questões que necessitam ser melhor examinadas.
Apesar de não ter o caráter de uma disciplina, o tema Ética fará parte do cotidiano escolar e, portanto, gostaríamos de ressaltar algumas questões sobre o conteúdo proposto.
ETICA
Parece-nos que a despeito do valor da proposta, a inclusão do tema ética encontra-se diretamente ligado a um apelo político e social e por isto carrega uma expectativa excessiva por parte dos autores e de toda a comunidade escolar.
Acredita-se que o ensino de ética será o grande pilar na reconstrução da sociedade brasileira, ou ao menos terá papel fundamental neste processo.
Retornando aos objetivos sinteticamente expostos na introdução dos PCNs, começamos a identificar o valor que os temas transversais adquirem nesta redefinição do papel da escola " Os temas propostos expressam conceitos e valores fundamentais à democracia e à cidadania e correspondem a questões importantes e urgentes para a sociedade brasileira de hoje, presentes sob várias formas na vida cotidiana. São amplos o bastante para traduzir preocupações de todo o país, são questões em debate na sociedade através das quais, o dissenso, o confronto de opiniões se coloca. O desafio da proposta de " Ética" é levar a escola a esse debate e incentivar que esta incorpore tais temas em sua prática " (Cfr. Parâmetros Curriculares Nacionais - Ética - Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria do Ensino Fundamental - SEF).
O movimento que deu origem a esta proposta já se delineava há algum tempo na sociedade sob a forma de uma indignação crescente diante de situações de exploração, desigualdade, impunidade e aos poucos foi constituindo-se num clamor nacional pela "ética" em todos os setores da vida social.
A discussão sobre ética, habitualmente confinada aos domínios filosóficos adquiriu uma relevância social sem precedentes. As questões morais tornaram-se objeto de conversas e incorporaram-se ao cotidiano do homem comum, expressando a urgência de uma redefinição nos modelos das relações humanas.
É fácil constatar a desorientação dos educadores, assim como de toda a sociedade diante de acontecimentos que nos colocam em contato com este tema, apesar de todos afirmarem a necessidade de uma "postura ética". Em busca de uma escola que incorpore os anseios sociais e políticos, a eleição do tema "Ética" expressa a intenção de incentivar a construção de uma escola atenta à realidade social, condição essencial para qualquer prática educativa. Além disto, o reconhecimento de que há todo um universo de relações cotidianas no interior da escola, sempre ignorado ou subestimado pelas propostas curriculares, permite concluir que "não se educa para o futuro", traduzindo com nitidez uma postura que educa para a percepção da própria realidade (Cfr. PCN-Ética...).
Qual é então, o papel da escola hoje? Ao tomar consciência de que "as práticas pedagógicas são sociais e políticas" e que "a relação educacional é uma relação política" temos assim definido o objetivo da escola: a formação da cidadania. Este objetivo é ressaltado e vai sendo coerentemente desenvolvido ao longo do projeto, mas já aparece definido em sua Introdução: "O presente documento propõe um trabalho explícito, específico e sistemático de análise de valores, de aprendizagem de conceitos e práticas e de desenvolvimento de atitudes que favoreçam a convivência democrática e a construção da cidadania." (PCN-Ética...).
A cidadania portanto, torna-se o eixo da educação escolar, o referencial dos conhecimentos, das práticas e valores que devem orientar o exercício pleno da participação social. Cria-se a figura da escola-cidadã, que sintetiza em si os objetivos, métodos e conteúdos da educação escolar.
Ética e educação do homem à totalidade
Desta forma, constatamos que o projeto está baseado numa concepção de ética que não se distingue de cidadania. A relação ética-cidadania existente no projeto (ética para a cidadania) tem como premissa uma definição de ética que contempla o homem exclusivamente em sua dimensão sócio-política.
O documento expressa seu entendimento sobre o termo ética da seguinte forma: "A Ética diz respeito às reflexões sobre as condutas humanas. A pergunta ética por excelência é: como devo agir perante os outros? Verifica-se que tal pergunta é ampla, complexa e que sua resposta implica tomadas de posição valorativas. A questão central das preocupações éticas é a da justiça entendida como inspirada pelos valores de igualdade e eqüidade" (PCN-Ética...)..
Para isso foram eleitos como eixo de trabalho, quatro blocos de conteúdo: Respeito Mútuo, Justiça, Diálogo e Solidariedade, valores referenciados no princípio da dignidade do ser humano, um dos fundamentos da Constituição Brasileira.
O texto de referência afirma que ética diz respeito às reflexões sobre as condutas humanas, mas isto pressupõe a existência de uma direção, um sentido último do agir humano, que é ignorado ou encoberto pela urgência de uma ação social. Se queremos possibilitar a formação de pessoas com autonomia moral e não apenas a serviço de normas estabelecidas pelo Estado, a pergunta ética por excelência desloca-se inicialmente do campo do agir, para o do ser, que qualifica e fornece as razões ao agir humano.
A exigência que tomou conta da imprensa, das conversas nos centros de poder, nos centros de produção cultural, nos locais de trabalho, encobre na verdade a necessidade urgente de um processo educativo que enfatize a reflexão sobre a natureza do homem e forneça critérios capazes de responder às suas necessidades pessoais e sociais. Nosso ponto de partida não se encontra em normas ou preceitos. A concepção de ética, tem como fundamento o ser do homem, a natureza humana. E implica a realização de todo homem sob pena de uma auto-agressão.
A ética portanto, é entendida como "um processo de auto-realização do homem, um processo levado a cabo livre e responsavelmente e que incide sobre o nível mais fundamental, o do ser homem. Quando porém se trata da moral, a ação humana é vista como afetando, não um aspecto particular, mas a totalidade do ser do homem. ela diz respeito ao que se é enquanto homem" (Lauand, L. J. Ética: Questões Fundamentais, p. 7, S. Paulo, DLO-FFLCHUSP, p. 7).
Longe de manter o homem preso aos próprios interesses, acreditamos que esta postura gera uma relação do homem com a sociedade mais dinâmica, verdadeira e eficaz, visto que o agir humano parte do reconhecimento do conjunto de exigências que constituem a natureza humana (desejo da verdade, de justiça, de beleza).
Desta forma, as perguntas sobre o sentido da existência , tais como: "O que é ser homem?", "Qual o sentido da vida?" irrompem novamente na consciência humana de modo inevitável, atravessando a superficialidade da cultura dominante que produz o esquecimento e a noção de que tais perguntas são socialmente irrelevantes e devem ser negadas ou simplesmente ignoradas.
É a partir da busca do sentido, que é característica própria da razão humana, que o homem é capaz de perceber como um valor a prática da cidadania. Não é este o objetivo de toda a educação? Que o homem possa, a partir do reconhecimento daquilo que o constitui dar corpo à novas formas de relacionamento sociais, que muitas vezes surgem de forma imprevista carregando algo novo e que não estão previstas nos nossos projetos de uma sociedade ideal?
A perspectiva de autonomia, que é enfatizada no documento e pressupõe uma dimensão individual, parece-nos correr o risco do fracasso. O documento reconhece um nível ético individual, mas assume claramente como objetivo "instrumentalizar os alunos na compreensão da realidade e na busca de soluções para questões sociais", encobrindo novamente a noção de realização da natureza humana.
Isto significa em termos práticos, que se o homem não tem consciência de quem é, da estatura humana que pode atingir e abre mão da busca do significado de sua vida, a solidariedade dificilmente será capaz de manter-se além de uma ajuda imediata, quando se compreende a impossibilidade humana de soluções definitivas.
Haveria razões que justificam a necessidade de ser um bom cidadão além da tolerância mútua? Isto será suficiente para garantir ao homem a manutenção do desejo que o move em todos os aspectos de sua vida? Como escapar do poder que nos pede apenas uma atitude de "homologação" como dizia Pasolini?
Não ignoramos que os valores retirados da Constituição partem do reconhecimento da dignidade humana e constituem um "núcleo moral" baseado em valores fundamentais como a justiça, igualdade e solidariedade, que ainda precisam ser implementadas no país. Nossa objeção refere-se à necessidade de uma abordagem ontológica, que enfatize o fundamento da ética, a raiz de toda a ação humana.
A sociedade brasileira necessita de ações urgentes e eficazes, mas a condição para reconstituir o tecido de uma sociedade esfacelada pela miséria, violência, impunidade e individualismo é ajudar o homem a fazer a experiência da busca de sentido, do reconhecimento das exigências que o constituem e o impelem à ação. Desta forma teremos a possibilidade de múltiplas experiências sociais, que partem de homens que também são cidadãos.
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